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A (r)evolução das técnicas de gravação

Por Wagner Rodrigues

Apesar da música acompanhar a humanidade desde a Pré-História, a gravação ou registro do som pode ser considerado um acontecimento recente. Pois, apenas a partir da segunda metade do século XIX que esse processo, mesmo que de uma forma rudimentar, começa a se tornar realidade. 

O primeiro equipamento capaz de gravar e reproduzir som, utilizando um cilindro giratório, foi o Fonógrafo, conhecido inicialmente como Talking Machine (máquina falante), desenvolvido em 1877 por Thomas Edison.

O procedimento de gravação era simples: fazia-se o cilindro girar através de tração mecânica (manivela), um cone captava as ondas sonoras (voz, instrumento musical)  desencadeando a vibração de um diafragma. A vibração, por sua vez, movimentava uma ponta aguda que efetuava a gravação através da criação de sulcos na camada de estanho que cobria o cilindro. 

Para ouvir o som, bastava substituir a ponta aguda (gravação) pela agulha (reprodução) e girar o cilindro no sentido contrário. O som seria amplificado acusticamente pelo próprio cone.

Anúncio de 1901 com o "Tio Sam" segurando um cilindro atrás de um Fonógrafo. Imagem: Amazon.

Uma década depois, o inventor Emile Berliner percebeu que poderia empregar um método de gravação diferenciado e substituiu o cilindro por discos planos, de cera, criando em 1887 o Gramofone, que ainda levou alguns anos para se tornar comercialmente viável. 

A principal diferença no processo é que nos cilindros de Edison o registro era feito na profundidade dos sulcos gerando “morros” e “vales” e nos discos de Berliner o registro era feito através de ranhuras laterais ao sulco. Como nos discos a agulha se apoiava no sulco para ler as gravações nas laterais, isso reduzia o desgaste da mídia.

Durante um determinado período os dois equipamentos conviveram lado a lado, mas em função da maior durabilidade, facilidade de replicação e barateamento dos discos em relação aos cilindros, foi o Gramofone que acabou se destacando no mercado fonográfico.

A famosa pintura de Francis Barraud intitulada "His Master's Voice" retratando o cão Nipper ouvindo a voz de seu dono já falecido em um Gramofone. A obra foi utilizada pela gravadora Victor Talking Machine. Imagem: Wikipedia.

Até meados da década de 1920 o processo de produção de fonogramas era totalmente mecânico (sem o uso da eletricidade) e consistia no mero registro de uma performance, não havendo praticamente a possibilidade de manipulação do material gravado.

Sendo que os primeiros estúdios eram salas onde os músicos tocavam seus instrumentos ao vivo na frente de uma corneta acústica ou cone que servia para fazer a captação das ondas sonoras e gerar a gravação nas mídias da época (cilindro ou disco). Se algum instrumentista ou cantor errasse, era necessário parar e recomeçar tudo novamente.

A mixagem era feita através da posição dos músicos em relação ao cone. Quanto mais próximos, maior era o destaque do instrumento na gravação e vice-versa.

O posicionamento também dependia das características de cada instrumento ou voz: os que produziam maior intensidade ficavam mais afastados do cone para que houvesse um equilíbrio.

O cantor normalmente se posicionava à frente para que a melodia vocal e a inteligibilidade das palavras não ficassem comprometidas, trazendo a voz para primeiro plano.

Gravação mecânica em meados dos anos 1920. A esquerda é possível ver o cone que fazia a captação das ondas sonoras e um produtor acima de uma plataforma orientando os músicos. Imagem: Stjo.

O desenvolvimento e aperfeiçoamento da eletrônica a partir de 1925 traz os amplificadores, microfones e alto-falantes para dentro dos estúdios, momento em que ocorre à substituição da gravação mecânica ou acústica pela elétrica, o que representou um salto enorme em relação a qualidade das produções, que passaram a captar um espectro de frequências mais amplo, tanto nos graves quanto nos agudos.

Desse modo, também foi possível ter um maior controle sobre a intensidade e o timbre. No entanto, um dos principais problemas ainda era a inviabilidade de edição do áudio, uma vez que o som era gravado diretamente no disco.

Com o advento dos gravadores de rolo, baseados em fita magnética, que se popularizam a partir do final dos anos 40, o processo começa a se tornar cada vez mais dependente de operações realizadas após o registro sonoro.

É nessa época que surgem as edições. Era comum os músicos gravarem diferentes takes de uma canção e depois serem selecionados os melhores trechos. A edição era feita manualmente, utilizando uma lâmina para cortar e uma fita adesiva para colar as fitas magnéticas, concatenando-as em uma versão final.

Ma Rainey: a mãe do blues utilizando um microfone característico da época. Em sua carreira transitou da gravação mecânica para a elétrica com uma voz arrebatadora que influenciou gerações. Imagem: Consultoria do Rock.

Em 1948 o guitarrista, produtor e inventor Les Paul produziu e lançou a canção Lover fazendo uso do overdubbing –  originalmente conhecido como sound on sound (técnica que adiciona novos instrumentos ou vozes a uma gravação já existente). Isso só foi possível após anos de experimentos, primeiro gravando diretamente em discos de acetato e posteriormente em fitas magnéticas.

Ele gravava seu instrumento na única trilha disponível em seu gravador. Em seguida reproduzia a gravação e executava, ao mesmo tempo, uma nova performance que seriam registradas em um segundo gravador, e assim conseguiu fazer com que as gravações fossem sendo sobrepostas.

A música How High the Moon, gravada com sua esposa, Mary Ford, em 1951, pode ser considerada um exemplo das primeiras produções de sucesso com o uso de overdubbing, onde ele “empilhou” 12 guitarras e 12 vozes (confira a canção no YouTube).

Em 1954 Les Paul irá mudar a história da gravação ao criar o protótipo do gravador multipista, com o objetivo de tornar a técnica de overdubbing mais simples e acessível, além de reduzir os problemas relacionados com perda de sincronia e acúmulo de ruídos.

O multipista se transformou na marca do estúdio moderno, permitindo o registro sonoro em canais separados e paralelos. Les Paul também foi pioneiro na utilização de técnicas como close miking (emprego de microfones individuais para cada instrumento) e uso de efeitos eletrônicos como reverb, delay, flanger, chorus, entre outros. Sua contribuição para o universo da produção musical foi gigantesca.

Les Paul fumando um cachimbo e operando um gravador de rolo na sala técnica do seu estúdio, enquanto Mary Ford encontra-se na sala de gravação com o microfone. Imagem: Les-Paul (site oficial).

O estéreo foi lançado no final da década de 50 e o avanço no número de pistas irá ocorrer gradualmente: primeiro duas, depois três, chegando a quatro pistas em meados dos anos 60. O álbum  Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), dos Beatles, foi produzido por George Martin com dois gravadores de quatro pistas interligados.

Antes do estéreo, mesmo que você tivesse duas caixas de som, ao escutar uma canção, tudo o que acontecia do lado esquerdo seria exatamente igual ao que acontecia do lado direito. O estéreo revolucionou a forma de produzir e ouvir música. A partir desse momento, foi possível, por exemplo, ouvir uma guitarra de um lado e outra diferente de outro de forma simultânea.

Daniel Farjoun em seu livro “Mix: o poder da mixagem” comenta que no início do estéreo só existiam 3 opções para posicionar o som no campo sonoro: esquerda, centro e direita. Só depois, com o avanço das mesas de mixagem, o aumento do número de canais e a chegada dos gravadores de 24 pistas, por volta de 1975, que a mixagem começou a rumar para o que temos hoje em dia. 

David Gilmour (Pink Floyd) apoiado sobre uma mesa de mixagem no Abbey Road Studios em 1975. Imagem: The Vinyl Factory.

No limiar dos anos 80 a tecnologia MIDI (Musical Instrument Digital Interface) possibilitou a comunicação entre diversos equipamentos e instrumentos eletrônicos (teclados, sintetizadores, sequenciadores, samplers, baterias, computadores), onde as informações musicais passaram a ser traduzidas em valores numéricos. 

O controle e a programação de timbres através do MIDI tiveram um importante papel na música eletrônica. Além disso, a tecnologia passou a ser usada no trabalho de arranjadores e produtores musicais, em diferentes gêneros, em trilhas sonoras e publicidade, estando também associada a edição de partituras no computador.

Foi, ainda, neste período que alguns músicos começaram a se interessar por adquirir certos equipamentos de áudio com o objetivo de gravar demos de forma caseira ou doméstica.

O álbum Nebraska (1982) do Bruce Springsteen, por exemplo, foi gravado em sua própria casa com um gravador de 4 pistas. O que era para ser uma demo com temas sombrios, foi lançado como álbum oficial, sendo classificado pela revista Rolling Stone como 43º dos 100 melhores álbuns da década de 80. Estava plantada a semente do Home Studio.

O gravador de cassetes da Tascam Portastudio TEAC 144 de 4 pistas usado por Bruce Springsteen. Imagem: Performer.

Em 1987 foi lançado no mercado pela Sony a fita DAT (Digital Audio Tape), amplamente utilizada em estúdios de gravação, sendo posteriormente substituída, no início dos anos 90, pela ADAT (Alesis Digital Audio Tape), desenvolvida, como o próprio nome sugere, pela empresa Alesis, com a capacidade de gravar até 8 canais simultaneamente.

Poucos anos após o lançamento do padrão ADAT, ele será substituído pelos programas computacionais de áudio multipista em disco rígido, conhecidos como DAW (Digital Audio Workstation), as famosas Estações de Trabalho de Áudio Digital, que irão se consolidar em meados da década de 90 (apesar dos pioneiros terem surgido no final dos anos 80).

Em função da baixa velocidade dos processadores na época, as DAWs apenas gravavam o áudio, sendo que a mixagem era feita na mesa de som com o uso de periféricos, uma vez que os computadores não tinham condições de processar muitas pistas de forma simultânea.

O lendário produtor Butch Vig em seu Home Studio. O cara deu uma enorme contribuição no sentido de definir o registro sonoro de diversas bandas de rock nos anos 90, como Nirvana, L7, Sonic Youth... Imagem: PSN Europe.

Com o avanço tecnológico na área da informática, a partir dos anos 2000, os computadores passam a ter velocidade suficiente para rodar múltiplas pistas com diversos plugins (programas acessórios).

É neste momento que começam a se popularizar as mixagens virtuais, também conhecidas como mix in the box, com ótimos efeitos, equalizadores, compressores, redutores de ruídos.

Grande parte dos equipamentos físicos usados em estúdios tradicionais agora são simulados através desses pequenos aplicativos. Com o passar dos anos eles vão ficando cada vez melhores em função do aperfeiçoamento dos seus algoritmos. 

Dentro deste contexto, o Home Studio finalmente se consolida como uma alternativa técnica e economicamente viável. Em um quarto, sala ou garagem, com um laptop, um pequeno par de monitores de estúdio, um bom microfone, fones de ouvido e uma simples interface de áudio, é possível produzir música com alta qualidade. 

O recurso de mobilidade agora faz parte das estações de trabalho que poderão ser levadas para qualquer ambiente. Uma grande quantidade de softwares multipista (DAWs) estão a disposição. Inclusive com alternativas livres como é o caso do Ardour, muito apreciado pelos usuários do Linux.

Visão geral do software livre de código fonte aberto, Ardour. Imagem: Ardour (site oficial).

Cada programa tem as suas características mas a maioria possui um potencial extraordinário, permitindo gravação, edição, mixagem e masterização de áudio com nível profissional. É claro, que para atingir um bom resultado é necessário também pensar na acústica do local que será utilizado para a produção.

Um único músico poderá se transformar numa banda completa ou até mesmo numa orquestra e nem precisa ter ou saber tocar os instrumentos físicos, basta noção musical e inspiração para utilizá-los virtualmente. As possibilidades são infinitas. Não existem regras. Mas é importante soltar a criatividade.

Enfim, são várias variáveis. Sendo que a figura do Produtor Musical é indispensável para a organização e desenvolvimento de uma produção profissional. Seja um Single, EP (Extended Play) ou álbum.

Mesmo que você seja músico e produtor, quando for entrar em estúdio com a sua banda, o recomendado é que chame outro profissional que tenha afinidade com o estilo para fazer a produção. Pois é necessário uma visão crítica externa para coordenar os trabalhos, buscar junto com os músicos o conceito, as referências, timbres, analisar o feeling e aplicar técnicas de produção coerentes com o projeto em questão, dentro de uma visão holística.

REFERÊNCIAS

  • BYRNE, David. Como funciona a música. Barueri: Amarilys, 2014.
  • EVANS, Mike. Vinil: a arte de fazer discos. São Paulo: Publifolha, 2016.
  • FARJOUN, Daniel. Mix: o poder da mixagem. Rio de Janeiro: Música & Tecnologia, 2012.
  • GAIGHER, Jobert [et al.]. Revolucionários: os teclados que mudaram a música para sempre. São Paulo: Prata Editora, 2019.
  • KINDERSLEY, Dorling. Música: guia visual definitivo. São Paulo: Publifolha, 2014.
  • MARTIN, George [org.]. Fazendo música: o guia para compor, tocar e gravar. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002.
  • MORAES, Amaro; SILVA, João Baptista Moraes e. Odisseia do som. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1987. 
  • MUGGIATI, Roberto. Blues: da lama à fama. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
  • RAMONE, Phil; GRANATA, Charles. Gravando! os bastidores da música. Rio de Janeiro: Guarda-Chuva, 2008.
  • SHAFER, Murray. O ouvido pensante. 2 ed. São Paulo: Ed. Unesp, 2011.
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